Chocolate

Por Fábio Pegrucci



Chocolate era um cão do parque. 

Toda essa nossa história começou com eles, com os cães 'sem dono' fixados em um parque público. As adoções vieram depois. A interação com o poder público para tratar da implantação de políticas, bem depois. Nossa tarefa original e que ainda mantemos é cuidar deles.

Chocolate aparecera por lá não fazia muito tempo, alguns meses apenas, tanto que ele nem consta da página Os Cães do Parque, onde muitos deles estão retratados, até mesmo alguns que já morreram. Era um macho magrinho e bem jovem, de um ano de idade, se tanto. Meio invocadinho, nem era muito meu amigo. Mais de uma vez latiu pra mim, não ia muito com a minha cara. Não era muito chegado a afagos.

Nem sempre estava no parque. Às vezes saia de lá e ultimamente tinha feito amizade com uns cães da rua. Mas, por ser novinho e bonito, desde que apareceu, era um cão para o qual acreditávamos ser possível conseguir uma boa adoção. E, de fato, a adoção dele havia sido confirmada: ele seria acolhido como adotado na base da polícia militar ambiental. Só precisávamos tomar as providências de praxe, castrar, vacinar.

Mas o Chocolate ficou doente.

Num domingo, o encontramos caído e debilitado, próximo ao estacionamento do parque, a poucos metros do playground, numa área cheia de gente, famílias, crianças, funcionários e prestadores de serviço da instituição. Ninguém capaz de enxergar aquele cão ali, jogado no chão. Apresentava muita secreção nasal e tosse, certamente tinha febre.

- Uma gripe - pensamos. O colocamos no carro e o levamos de lá, o alojando bem longe da área de uso público do parque, num local que há algum tempo obtivéramos autorização para utilizar como nosso ponto de apoio para situações como aquela, um cão doente ou necessitando de abrigo temporário.

Por alguns dias, o mantivemos sob observação, bem aquecido, bem alimentado e ministrando (por conta própria) antibióticos básicos, desses que todo cachorreiro conhece. Ele chegou a reagir, a ficar mais animado, voltou a brincar. Mas a tosse e a secreção não cediam. E começamos a notar também tremores faciais estranhos.

Chocolate no carro, vamos ao veterinário.

A doutora Luciana tem duas qualidades que eu muito admiro: é amorosa e paciente, na mesma medida em que não enrola, fala o que vê na hora, 'na lata', sem rodeios. E ela não precisou de nem um minuto para, ainda na recepção da clínica, dizer o nome da doença que faz tremer qualquer um que ame cães.

Cinomose.

A secreção, os tremores e uma sutil alteração nos "coxinhos" das patas, foi tudo o que ela precisou para o diagnóstico. Disse não ser necessário, mas perguntou se eu queria fazer um teste para eliminar qualquer dúvida, é instantâneo, como um exame de gravidez, mas através da mucosa nasal. Autorizei. Deu positivo.

Cinomose.

A Luciana nos falou tudo o que iria acontecer com ele, como o quadro muito provavelmente iria progredir dali para frente, da gravidade da doença e das chances de cura. Contou-nos de pelo menos dois casos de sucesso. Falou também da possibilidade de sequelas. Prescreveu a medicação, uns 5 ou 6 remédios diferentes, quase todos de uso humano. O principal, um antibiótico difícil de encontrar, mas o único capaz de atingir o vírus na parte neurológica do cão. 

Mas não é disso que eu quero falar. Este não é um texto sobre cinomose e eu nem seria capaz de escrever um que fosse. Sobre cinomose, uma doença viral que não atinge seres humanos e nem outros animais, mas que é altamente contagiosa e quase sempre mortal para cães, há muitas referências na internet. Procurem no Google.


Um mês e meio antes do Chocolate cair doente, uma equipe do Centro de Controle de Zoonoses estivera no parque, como parte da ação de um grupo formal de trabalho da instituição do qual eu participava. Contemplaram a comunidade local (nas dependências da instituição moram quase 300 pessoas e em quase todas as casas há animais) com vacinação antirrábica. Evidentemente que nos encarregamos de incluir os nossos 'cães do parque' na história e passamos toda uma manhã de domingo literalmente caçando os cachorros por toda a enorme área florestal, para levá-los até os vacinadores. 

Mas eu, nas semanas e dias anteriores a essa ação, pedi também ao pessoal do CCZ que disponibilizasse algumas doses (quinze ou vinte, no máximo) de vacinas espécie-específicas, as chamadas V8 ou V10: capazes de imunizar, mesmo que parcialmente, os animais contra as principais viroses, entre elas a cinomose. O CCZ tem essas vacinas em quantidade, pois são obrigados a aplicá-las em todos os cães recolhidos aos seus canis. Eu pedi e insisti. A eles não custaria nada cedê-las. Ficaram de levar. Mas não levaram, se esqueceram ou não deram importância.

Uma dose da vacina muito provavelmente teria evitado que o Chocolate contraísse a doença.

O certo é que, por termos tomado a iniciativa de isolar aquele cão que julgávamos com uma mera gripe, muito provavelmente evitamos um surto de cinomose que poderia ter vitimado muitos animais. Do parque, dos moradores da instituição, das redondezas. Sem querer, eram, como sempre, as mãos privadas executando política pública. 

Mas também não é sobre isso que desejo falar. Já falo disso muito, quase o tempo todo.

    
Eu quero falar dos quase dois meses que se seguiram.

Não havendo nenhuma alternativa, Chocolate ficou abrigado sozinho - e nós deveríamos nos revezar para visitá-lo duas vezes por dia, todos os dias: para alimentá-lo e medicá-lo. Nos primeiros dias, a Alessandra e a Soraia, com muito mais talento que eu para a coisa, dividiram entre elas as visitas, eu ia de vez em quando. Mas, por ter os horários mais maleáveis, logo eu passei a ir mais constantemente e, depois, todos os dias.

De início, aquilo não parecia uma coisa tão séria, porque ele chegou a melhorar, a secreção e a tosse acabaram, ele se alimentava sempre muito bem, ficava alegre toda vez que eu chegava. Mas logo os tremores aumentaram, ele passou ficar desequilibrado, como se tivesse uma labirintite. Depois, suas pupilas se dilataram e era nítido que ele tinha dificuldades de enxergar. Mais alguns dias e perdeu a firmeza das pernas traseiras e passou a andar se arrastando nas dianteiras. Depois, perdeu também o controle das pernas dianteiras e não se movia mais, apenas levantava a cabeça - com tudo isso, ainda conseguia abanar o rabo para nós. 

Era inverno e, todo fim de tarde, ele era embrulhado em cobertores: "envelopar o Chocolate", era como chamávamos. No dia seguinte, chegava eu lá e, claro, ele havia feito as necessidades dentro do envelope. Pegar chocolate no colo, levá-lo para fora, deitá-lo no gramado para que pegasse sol, limpá-lo, estimulá-lo, alimentá-lo: todo dia eram 200 gramas (ou mais) de carne moída crua, em bolinhas dentro das quais iam seus comprimidos. Água, por algum tempo ele conseguia sorver do pote, depois, quando o estado se agravou, era na seringa. E na seringa também tomava leite, em parte também misturado a outro remédio, uma vitamina, algo assim. 

Por que manter um animalzinho nesse estado, por que não abreviar seu sofrimento? Porque o estado clínico dele era perfeito: repetíamos o hemograma e tudo nele funcionava bem. Chocolate conseguiu a proeza de ganhar peso durante a fase mais crítica daquilo tudo. A dra. Luciana acreditava e nós também. Aquela devastação provocada pelo vírus no sistema nervoso era esperada, mas clinicamente ele estava bem: restava que o vírus fosse expulso e aí, depois disso, avaliaríamos as sequelas, ele certamente necessitaria de fisioterapia. Mesmo que ele se curasse, aquilo ainda se prolongaria.

Eu estava disposto a tudo. Enfrentaria o que fosse necessário para recuperá-lo. Eu queria contar aquela história - que, como todas as 'histórias tristes' dos Cães do Parque (já houve muitas) acontecia secretamente, sem divulgação alguma no site ou nas redes sociais. 

Eu comemorava todo e qualquer aparente progresso, por menor que fosse. Se ele conseguia beber leite direto do pote. Se fazia força nas pernas dianteiras, tentando se erguer. Eu o fotografava e filmava quase diariamente. Queria ter material para, mais tarde, produzir um vídeo clipe mostrando a luta dele até o dia em que se levantaria e andaria de novo (na minha imaginação, o ápice desse vídeo seria uma cena em que ele levantaria a perninha pra fazer xixi numa árvore).

Mais secretamente ainda, eu já tinha resolvido que, passada a doença, qualquer que fosse o estado dele, eu o adotaria. Aquele cão magrelo que não gostava de mim seria meu, ainda que manco, torto ou cego.

Era tudo isso que justificava aquele sacrifício diário. Quantos foram os dias em que, ao acordar, não tinha em mente qualquer compromisso pessoal ou profissional, só queria ir imediatamente vê-lo. E quantas foram as vezes em que, mesmo depois de lhe ter dado os cuidados necessário, cancelei compromissos de trabalho só para ficar ali, com ele, à tarde toda muitas vezes, só para que ficasse mais tempo no sol

Quem me conhece sabe que eu sou um sujeito que não troca um pneu, não lava um prato, não troca uma lâmpada - se puder pagar para alguém fazer por mim. Eu sou assim, sempre fui. E também nunca soube cuidar de cachorro, não. No começo eu mal tocava neles, porque tinha medo. O meu negócio era outro, era tentar ajudá-los mais com a cabeça e menos com as mãos. Falando, escrevendo, arrumando adoção. Sendo motorista deles, levando-os pra lá e pra cá, veterinário, castração, adotantes. Fazendo site. Pagando as contas. Resmungando no twitter. Eu nunca soube dar remédio, limpar ouvido, tratar ferida. As meninas faziam isso, eu só olhava. Eu era uma farsa da proteção animal.

Eu era. Até o Chocolate.



O Chocolate foi o episódio que faltava para que uma página da minha vida se virasse de forma definitiva. Eu que - quem me conhece também sabe disso - já virei tantas páginas na vida, já vivenciei tantas outras coisas diferentes, em outras épocas, com igual paixão, sempre soube (sempre, desde criança) que um dia faria algo relacionado à proteção de animais. Naquela altura, eu já tinha feito muitas coisas, mas foi só com o Chocolate que eu tive a certeza íntima de que aquilo era realmente sério.

O sujeito que não lava os próprios pratos carregava pra dentro e pra fora aquele vira-lata paralítico e fedidinho e havia decidido que ele não morreria.

Mas houve um dia em que ele piorou. De repente regrediu. Tudo o que parecia progresso sumiu. Estava prostrado, mais parado. Pela primeira vez, dificuldade para alimentá-lo. No dia seguinte, estava ainda pior. Praticamente imóvel. Os olhos quase parados. Perdera o controle até sobre a língua. Comida do dia anterior estava parada na boca dele. Respirava com dificuldade. Algum quadro secundário, que não chegou a ser identificado, havia se instalado.

Levei-o para o gramado, tentei animá-lo. Nada.
Eu soube que havia chegado ao fim.

Ele estava se desprendendo, já quase não estava mais ali. Mas poderia levar horas, talvez ainda mais um dia ou dois. Avisei as meninas por telefone, dizendo apenas que ele estava muito mal. Mas eu já sabia.

Quando o peguei no colo e o deitei no banco de trás do carro, eu sabia que era a última vez. Ele não voltaria mais. A história que eu queria contar, o vídeo que iria fazer, nada disso aconteceria. Até a clínica, éramos só ele e eu, e aquilo tudo tinha chegado ao fim. Depois, éramos ele, eu e a dra. Luciana, que tanto tinha acreditado na recuperação dele. E ela o libertou daquele estado, ele já quase nem estava mais ali naquele corpo inerte, mas o pouco que estava, eu vi apagando devagarinho. Ele não sentiu nada. Nem dor, nem medo, nem nada. Era só um animalzinho, sem consciência do que é morte, se desprendendo do corpo físico. Eu também não senti nada. Nem dor, nem medo, nem culpa, nem tristeza, nem alívio. Nada. O que eu iria sentir - e eu sabia que iria sentir - era uma outra coisa. Era vazio.

Era dia 15 de Setembro de 2011.
Faz um ano.

Durante muitos dias eu senti um vazio enorme. Não era saudade, nem era frustração. Era só o vazio, era sentir falta de cuidar dele, de pegá-lo no colo, limpá-lo, dar-lhe comida e água na boca. Era sentir falta de exercer aquilo, aquela humildade solitária, franciscana - e autêntica porque solitária, sem plateia, sem aplauso, quase secreta. Como eu sempre gosto de dizer, este não é - mesmo! - um terreno para vaidades: se eu estivesse interessado em ribalta, iria ser artista ou político, não estaria cuidando de cães sem dono. 

Morte é apenas morte. Quem faz o que a gente faz tem que estar preparado para lidar com isso. Faz parte da história. Sem essa de mimimi, virou uma estrelinha. Odeio profundamente essas - perdão! - mulherices da proteção animal. Chocolate morreu. Pegou um vírus letal, tentamos de tudo, recebeu todo o tratamento possível, não economizei em nada, ele lutou, nós lutamos, não deu, ele morreu, pronto, ponto. Por crer na continuidade e na renovação da vida, tenho a total certeza de que, tão logo desprendeu-se da matéria, foi rapidamente purificado do que a doença lhe havia causado e retornou no corpo de outro cãozinho. Gosto de imaginar que pode ter passado pelas minhas mãos novamente, em um dos tantos filhotes que ajudei a encaminhar depois da morte dele.

Mas o certo é que o episódio causou, em mim, transformações definitivas. Há uma frase com a qual tenho ilustrado o final dos vídeos institucionais que tenho feito para Os Cães do Parque:

"Quem nos pergunta porque fazemos tanto pelos animais, nem imagina o quanto eles fazem por nós".

Isso tem a ver com muita coisa, mas tem muito a ver com o Chocolate. Assim como tem a ver com ter conseguido sublimar muitas coisas que eu julgava necessárias e que hoje, só por me lembrar, parecem-me futilidades inúteis das quais me libertei. Tem a ver com sentir-me mais ativo, útil e dotado de poder transformador do que jamais senti. Tem a ver com ter reformulado minha relação com o dinheiro: e por causa disso mesmo ele ter se tornado algo mais fácil de ganhar. Tem a ver com agregar valores intangíveis e não quantificáveis.


Eu não cuido de animais por falta de alternativa. Não transfiro para eles sentimentos paternais (ou maternais, como é mais comum no meio) não realizados. Não os vejo como criancinhas. Não projeto neles minhas frustrações amorosas, mesmo porque não as tenho. Não os protejo para sentir-me herói, para ser importante para alguém, para aparecer ou para ganhar respeito das pessoas. 

Sou um sujeito que fez de tudo um pouco do que quis fazer na vida. E não sinto saudade quase nenhuma do que ficou para trás. 

Eu cuido de animais porque eu gosto deles, porque eles me divertem, porque o sofrimento deles me comove, porque eu me sinto capaz de alterar a realidade deles de uma forma mais ampla.

Mas, sobretudo, porque eles fazem muito mais por mim do que eu sou - ou serei! - capaz de fazer por eles. E este texto, que pouco importa se alguém vai ler até o fim, nada mais é do que um agradecimento ao Chocolate - um cachorrinho chatinho e que nem gostava de mim - por ter me proporcionado a oportunidade de cuidar dele.

Ele se foi, eu fiquei.
Fiquei melhor.

6 comentários:

  1. ADOREI o texto, tbm passei por um caso de cinomose sem final feliz, mas sigo em frente, cuidando de 4 peludos que peguei na rua e que com certeza, me fazem ser uma pessoa melhor. Fábio, tenho uma grande admiração pelo trabalho de vcs.

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  2. Se a história foi real ela é linda! Se é uma ficção, parabéns - ela também é linda! O que me emocionou foi a sua emoção, mas o seu dom de escrever ajudou em tudo! /abração\

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  3. Tive uma fêmea que mal chegou a crescer. Foi atingida por esse vírus letal...cuidei dela até o fim e, também com ajuda médica ela se foi. Outras alegrias vieram depois e também se foram mas, me fizeram um alguém muito melhor com certeza.
    Parabéns pelo texto/trabalho,

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  4. Oi Fabio, adorei o texto. Até me emocionei porque lembrei da Nina (Julieta) e do que aconteceu com ela. Tambem não economizei em nada, muito menos em amor e carinho. Eu sabia que ela não estava bem, mas os veterinários insistiam em falar que estava. Coração de mãe não se engana nunca( ao contrario de vc, eu me considero mãe deles, trato como filhos.) Enfim, ela se foi de um modo muuuuuito triste, tendo convulsões e morreu no meu colo. Não posso lembrar da cena porque choro muito. Mas também foi um alivio pra ela, ela sofreu tanto...Não tenho frustrações amorosas também, mas não podia um dia se quer deixar de dar um beijo nela. Muito esperta, era a chefe do mundo animal da minha casa. Mas ao mesmo tempo sensível e delicada. Hoje sonhei com ela. Mas não era bem ela...era outra cadelinha, com os mesmos traços físicos. Quem sabe não foi um insight pra adotar uma irmãzinha pro Pépe ( Romeu). Não exitaria em pedir ajuda pra vcs.
    Muito obrigada pelo texto, me identifiquei muito porque também tinha medo e hoje, sei cuidar deles e entendê-los. Obrigada por me darem a oportunidade de fazer uma das coisas mais importantes do mundo: ser mãe de bicho.
    Já já entro em contato de novo pra adotar outra cadelinha. Fiquei meio relutante no começo, mas não vai ter jeito. Beijos! Priscilla

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  5. adorei o texto parabens por todo o cuidado com o chocolate. a maioria das pessoas sequer sabem que essas coisas existem . que existem animais abandonados e doentes, que as pessoas judiam e muito.
    parabens pela consciencia nas pessoas e pelo trabalho dos caes do parque
    att
    Flavia
    www.adoteumfocinhocarente.blogspot.com

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  6. Vc sabe q sempre tive animais e q por algumas vezes tive q tomar essa~decisao. É muito difícil e doloroso, mas a gente sabe, pelo olhar q nos lançam, q chegou a hora de libertá-los do sofrimento. Como sempre eles nos ensinam até isso.

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