Maria Bonita

Por Os Cães do Parque


Desde que a ação voluntária Os Cães do Parque se iniciou, em meados de 2009, essa foi uma das histórias mais complicadas que vivenciamos e enfrentamos.

No final de 2013, alguns cães se fixavam nas proximidades de um dos portões de acesso da área administrativa do parque, também próximo ao refeitório da instituição. Alguns sem dono que por ali apareceram, gostaram do lugar e não mais saíram; outros, cães de moradores da instituição, que costumeiramente ficavam soltos por ali. 

Isso acontece sempre, em qualquer lugar: onde houver um posto de vigilância, uma portaria, um local onde houver presença de pessoas na maior parte do tempo, com oferta de abrigo e de alguma alimentação, lá aparecerá um cachorro. Postos de gasolina, guaritas de vigilantes, estacionamentos, postos de polícia: esses locais constantemente acabam adotando um cachorro - ou sendo adotados por um deles.

No parque estadual não é diferente.

O fato é que um grupinho de quatro ou cinco estava sempre próximo àquela área. Todos cães já conhecidos, a maioria machos; e como todas as fêmeas da área estão há muito tempo castradas, a situação não inspirava maiores preocupações. 

Até que, em Dezembro/13, ela apareceu. 


Era uma viralatona enorme, magrela, esfomeada e, principalmente, muito apavorada. Nós a vimos poucas vezes e, por poucas vezes, conseguimos nos aproximar um pouco dela para lhe dar um pouco de alimento. Nem mesmo tivemos oportunidade para o procedimento básico, toda vez que uma cadela desconhecida aparece por ali: primeiro, tentar descobrir se é castrada; se não for, providenciar que o seja o mais rapidamente possível.

Não deu tempo. Não fazia nem uma semana que a cachorrona zanzava por ali e o pior aconteceu: ela entrou no cio e provocou um dos maiores pandemônios caninos que aquela área já presenciou.

Pelas semanas seguintes, cães machos de todos os tipos, tamanhos e cores começaram a "brotar", formando por vezes uma matilha ruidosa, nervosa, agressiva e bagunceira. Deslocavam-se sem parar, entre a área administrativa e a área de visitação do parque, causando os óbvios transtornos.

Diante desse cenário, dentro de um parque público, 99,9% das pessoas limitam-se a reclamar, praguejar, enxotar - inclusive os agentes públicos que teriam por obrigação pelo menos compreender as causas do problema e terem, no mínimo, uma vaga noção de como enfrentá-lo; ou de, pelo menos, colaborar com quem quer resolvê-lo.

Durante SEMANAS a perseguimos sem sucesso pela gigantesca área florestal, pouco podendo fazer para evitar o indescritível sofrimento que essa situação causa aos animais; e não só à fêmea (privada durante dias seguidos de dormir e de se alimentar), mas também aos machos, que adoecem, caem de exaustão ou se arrebentam uns aos outros em brigas terríveis.

Nessa história, pelo menos um cão morreu. Um outro, terrivelmente ferido, conseguimos salvar.


Apavorada, com mais medo de nós (e de nossas coleiras, guias e enforcadores) do que dos cães, ela não se deixava capturar, sequer permitia que nos aproximássemos - sem entender que apenas nós poderíamos livrá-la daquele enorme problema - e desembestava toda vez que nos via.

Apenas no dia 16 de Janeiro de 2014, quase um mês após seu aparecimento, com a providencial ajuda de um porteiro do parque, que conseguiu prendê-la em sua guarita e nos chamou, finalmente conseguimos capturar a cachorrona. Exausta, magra, desnutrida e ainda muito assustada, ela foi abrigada e teve alguns dias de descanso, só comendo e dormindo. Em seguida, foi castrada.

A ruidosa matilha que tomou o parque de assalto, como era óbvio, desapareceu, permanecendo apenas os cães que por lá já viviam. Como também é óbvio, após termos capturado a cadela e feito a "mágica" de fazer desaparecer a cachorrada que incomodava, ninguém entre as pessoas que reclamavam e praguejavam nos procurou para oferecer algum tipo de ajuda para sua manutenção.


Ela foi batizada como Maria Bonita porque um de seus perseguidores "apaixonados" (exatamente aquele que quase morreu brigando por ela) já era chamado de Lampião por alguns funcionários do parque - porque era um baixinho invocado que sempre andava em bando.

Maria Bonita permaneceu abrigada conosco por quase cinco meses. Muito tímida e desconfiada no início, aos poucos a grandalhona de mais de 30 quilos e pernas longuíssimas, foi se tornando mais confiante, tranquila e afetuosa. Sem aparentemente ter noção de seu tamanho e força, pulava desastrada na gente quando chegávamos para cuidar dela: a ponto de nos derrubar mais de uma vez. Enfrentou o período de confinamento com muita elegância: não era de fazer barulho ou de destruir coisas. Tornou-se também uma ótima companheira de caminhadas assim que se habituou a usar a coleira.


Sabíamos que era uma adoção difícil de conseguir: mantê-la abrigada era um tiro no escuro. Um lar para ela poderia demorar muito ou até mesmo jamais aparecer: ela precisava de um bom espaço e de pessoas experientes; e são poucas as pessoas dispostas a adotar um cão já adulto, sem raça, sem maiores belezas aparentes e, principalmente, de porte grande.

Começamos a anunciá-la em Fevereiro de 2014. Ela ganhou um vídeo clipe:


Apenas em meados de Maio recebemos o primeiro contato das pessoas que dariam lar à nossa Maria: a Milene e o Nelson gostaram dela, forneceram informações que aprovamos e vieram de Itatiba (SP) apenas para conhecê-la. Cumpridas as formalidades, uma semana depois, no dia 31 de Maio de 2014, nós a levamos até a casa deles, uma bonita propriedade nos arredores da cidade, cercada e protegida, com um grande gramado, árvores e canil, onde a grandalhona logo se sentiu um casa, na companhia de outras duas cachorrinhas.

Chegando à casa da Milene e do Nelson, em 31 de Maio de 2014.

Ela desde então passou a se chamar Fiona - e, pelo que sabemos, está muito bem em sua nova vida; certamente nem se lembra mais do perrengue que passou naquele parque e dos meses em que aguardou pela chance de um lar de verdade.

Maria Bonita - agora Fiona - alguns meses após a adoção.

 Ela, assim como os cães que invadiram o parque por causa dela, são fruto da irresponsabilidade e da negligência de alguém: cães não brotam da terra e nem caem de árvores. A irresponsabilidade, a negligência e a omissão são capazes de algo inacreditável: transformar o "melhor amigo do homem" em praga urbana!

E se você ainda acha que essa história de "proteção animal" é coisa de mulher maluca e de ativista-modinha, saiba de que a missão número um de quem se dedica, por amor, a essa tarefa é promover o CONTROLE REPRODUTIVO dos animais, única forma racional e eficiente de inseri-los à sociedade - uma vez que, tirados da natureza pelas mãos do homem há milênios, cães e gatos não fazem parte de 'ecossistemas'.

Protetores fazem isso. Os outros 99,9% das pessoas reclamam, resmungam, fazem abaixo-assinados, praguejam, enxotam - e, invariavelmente, acham que o problema não é delas, é de outro, alguém que se pode chamar, alguém que venha com uma solução mágica.

Os Cães do Parque é uma ação voluntária independente. Não há mágica alguma. Nossos atendimentos são feitos em clínicas veterinárias particulares e pagamos por todos eles. Os animais que eventualmente mantemos abrigados, são sustentados com recursos próprios. Não pedimos nada a ninguém - nem a particulares, nem ao poder público.

Mas achamos que, nesse assunto, muito mais gente poderia, mesmo que eventualmente, fazer um pouco. Nem que seja só um pouquinho. Quem faz um pouquinho e, por isso, passa a compreender um pouquinho, no mínimo, para de resmungar.

O que já é alguma coisa.




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